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Private Office

 

(Colective exhibition)

2007

Avenida 211, Lisbon

 

Ao subir a Avenida da Liberdade a imagem do Passeio Público é ténue. A arquitectura insiste na memória de uma área residencial, atrasando o entendimento da mudança para um território de empresas, comércio e turismo. Contudo, o processo de gentrificação acelera a alteração da paisagem, desencadeia e impõe a substituição destes edifícios por outros, com outras característica e habitados por outras vivências. Já quase a chegar ao Marquês de Pombal, o primeiro andar do 212 é ocupado pelo espaço expositivo AVENIDA, num edifício que ainda remete para o tempo e para o espaço residencial, e que esteve até recentemente ocupado, já com uma “segunda vida”, por escritórios. É um espaço em expectativa. A mudança de espaço privado (residencial) para público (escritórios) serviu de motor e definiu as linhas orientadoras dos trabalhos expostos na exposição colectiva Private Office.

 

As divisões que dão para a fachada oriental, a que contempla a Avenida, foram ocupadas por Paula Prates (a norte) e por Miguel Ângelo Veiga (a sul). A localização privilegiada na planta da casa dá a estas divisões a função nobre de acolhimento, a vista privilegiada, a amplitude de espaço. As intervenções dos dois artistas partilham de um confronto com a arquitectura.

Em Blasted Room, Paula Prates adaptou formas que tem vindo a desenvolver no seu trabalho em pintura – trabalho visual que parte da apropriação de elementos retirados de imagens científicas – à escala da sala. Os poliedros foram colocados a partir das janelas que ladeiam as paredes da divisão e forrados com placas de esferovite que reproduzem os elementos decorativos tradicionalmente feitos em estuque, tais como os que se encontram no tecto daquela divisão. É na continuidade entre a arquitectura e os elementos introduzidos que surge a proposta da artista, instalando a dúvida: serão os corpos invasores o próprio espaço revirado, ou será que os vários fragmentos pertencem a um corpo exterior, que atravessando o interior se torna nele.

A instalação de Miguel Ângelo Veiga parte da sobreposição de duas imagens de satélite, do Museu Guggenheim, em Nova Iorque, e do 212 na Avenida da Liberdade – que à mesma escala apresentam semelhanças na sua dimensão e localização urbanística. É na secção resultante da justaposição dos dois edifícios que o artista se concentra. A intervenção consiste no somar da porção do museu à correspondente no edifício na Avenida: à cota do primeiro andar, na coordenada ditada pelo canto do edifício, e na extensão de três divisões, são reproduzidas as formas curvas do Guggenheim. A peça Non Objective Painting problematiza os modelos expositivos institucional/público e alternativo/privado e propõe a tese de que os dois espaços são confrontáveis, que um pode compreender o outro (antítese), dando origem a um espaço de síntese crítica – a ocupar pelo observador.

 

A textura habitacional predomina no interior da casa: andares, lado direito, lado esquerdo; cozinhas, dispensas, entradas de serviço; soalhos de madeira, elementos decorativos, superfícies de mármore. Por sua vez, a presença da funcionalidade dos escritórios, ainda que parca, altera o ambiente habiticional: candeeiros com grelhas metálicas e luz branca, aparelhos de ar condicionado, calhas de distribuição eléctrica. É na dialéctica entre estas duas memórias que se localizam as propostas de Rui Mourão e Pedro Valdez Cardoso.

Rui Mourão trabalhou nos espaços do apartamento em que a memória residencial (pessoal) se confunde com o resíduo do espaço funcional (anónimo). No vídeo Tróia explora um outro local de trabalho – espaço organizado, controlado, operacional – entregue a funcionários adormecidos sobre as mesas de trabalho. A projecção-vídeo é feita numa sala, alterada em função do modelo open-space, onde ainda se encontram as calhas de distribuição de energia para computadores, telefones, faxes, iluminação, espaço de trabalho para outros funcionários ausentes. A proximidade do contexto das imagens ao espaço (vazio) onde estas são projectadas, cria um forte mise en abîme em constante multiplicação. Em Arquivo o recheio da casa (em mudança) do artista foi distribuído por estantes encontradas numa pequena sala. A informação anónima e fechada de um repositório é substituída por testemunhos que na sua organização revelam narrativas pessoais.

As três propostas de Pedro Valdez Cardoso constroem uma frase, sussurrada em três divisões, em que o verbo é memória. Afastam-se de uma acção individual e aproximam-se de uma abordagem arqueológica. Letargia, Black Out e Estuque são peças que giram em torno do desaterro de memórias: a pedra tumular assinala a morte, os pássaros pretos pressagiam, os restos de uma refeição testemunham a passagem de uma vivência. O processo de entendimento do passado passa necessariamente pelo reenvio do presente a esse passado. A negociação com a história reside na precisão com que o artista coloca as obras em cada divisão, na escolha de materiais, nas acções que associa ao uso (a documentação da limpeza profissional da peça Letargia) e à observação das peças (a utilização de luzes de escavação para ver a obra Estuque).

 

As diferentes vivências que se apropriam das divisões de uma casa são definidas em função da sua localização, da exposição ao exterior, da abertura à luz. As intervenções de Catarina Saraiva e Jorge Santos surgem da performatividade do habitar de um espaço. A natureza das suas pesquisas direccionou os artistas para as divisões mais interiores, menos expostas.

A instalação intitulada Performance de Catarina Saraiva ocupa uma sala, perto da cozinha, com duas janelas e duas portas que se mantêm fechadas. No centro da sala estão dispostas duas mesas – objecto doméstico que, por excelência, sintetiza a actividade social, a refeição, o trabalho, a conversa – em tensão. São os elementos copulados aos tampos e pernas das mesas que conservam esta ligação. Agarrados ao objecto, mas autónomos na sua forma, os elementos assemelham-se a figuras que ocupam o espaço de proximidade entre dois corpos ausentes. A iluminação reduzida remete para a intimidade das acções do quotidiano.

Para a produção de Projecções Interiores, Jorge Santos habitou a casa da Avenida durante a noite, procurando os instantes de estranheza num espaço familiar, das imagens transitórias que surgem na inactividade, no silêncio e na solidão dum dado lugar. As linhas invasoras de luz são acentuadas por uma superfície, aplicada pelo artista, de purpurina que criam uma textura lunar, mediada por barreiras, filtros e obstáculos através das árvores de um jardim situado nas traseiras do edifício. É no espaço de abertura, de fuga da fronteira entre o interior (familiar) e o exterior (desconhecido), que Jorge Santos nos inclui no momento em que um espaço funcional deixa lugar a uma natureza arbitrária.

 

Em 1977, Gordon Matta-Clark interveio num edifício de cinco andares que havia sido ocupado por uma empresa que entretanto falira, na Antuérpia. Office Baroque concretizou-se numa intervenção que para ser vista, o observador tinha que entrar no interior do edifício, para descobrir os cortes no tecto/chão que faziam comunicar os vários andares. O edifício estava localizado numa zona que transitava da ocupação do comércio mercantil para uma área de interesse turístico.

As narrativas dos locais de Office Baroque e Private Office têm pontos em comum. A interrogação sobre a arquitectura e suas implementações sociais, politicas e históricas; o trabalho sobre a memória no confronto do espaço privado/público; uma prática intrinsecamente associada à performance; a crítica e negociação com o espaço institucional – paradigmas que parecem ser reenviados, renovados e repensados, individualmente e autonomamente, no contexto da presente exposição.

 

Maria do Mar Fazenda

Setembro de 2007

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