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Clivagem

2011

Sopro Gallery, Lisbon

 

Entre as fissuras da estrutura mineral

Sara Antónia Matos

 

O cristal é um sólido formado por arranjos internos de átomos e moléculas regularmente repetidas, e distingue-se pelas suas faces externas. As suas partículas assumem formas geométricas, tais como arestas, ângulos e planos, directamente ligadas à sua malha elementar. Lembrando paisagens, alguns cristais mudam de cor, como quartzo rosa ou ametista, que podem empalidecer em exposição prolongada ao sol.

 

Vem isto a propósito da exposição Clivagem de Paula Prates, na Galeria Sopro em Lisboa, a decorrer entre Maio e Junho de 2011, na medida em que, ao olharmos para os desenhos em tinta-da-china ou grafite, de imediato, os associamos à mineralogia e às configurações geométricas que os cristais assumem. Nas pinturas, as gradações de tons quentes sobre tons frios realçam a dimensão escultórica daqueles sólidos, que adquirem uma composição paisagística através da sua justaposição e sobreposição.

 

Recorrendo a vários meios, as obras que constituem a exposição, convidam a experimentar a noção de fractura inerente à estrutura do cristal. O termo clivagem, em mineralogia, designa a forma como os minerais se quebram seguindo os planos da sua estrutura interna. Em parte, o interesse pela constituição mineral e pela compreensão abstracta que as suas formas exigem, explica a intimidade da artista com a geometria. O horizonte de investigação plástica delineado pelo encontro das duas áreas – mineralogia e geometria –, tem vindo a ser reiteradamente confirmado pelo percurso desenvolvido por Paula Prates, ora no suporte bidimensional ora na expressão tridimensional. As instalações site-specific “Intervenção Pictórica” no espaço da Fábrica do Braço de Prata e “Arquitectonic” no Pavilhão 28 do Hospital Júlio de Matos, ambas em Lisboa (2010), são exemplo disso. Elas colocam à vista o princípio da geometria, a saber: a representação do espaço e dos objectos que podem ocupá-lo, dos volumes e coordenadas a eles inerentes, através da conversão para a linguagem bidimensional (e vice-versa). As obras anteriormente referidas, intercalam o registo pictórico com a arquitectura dos edifícios onde as mesmas foram expostas, como se as linhas, saindo das paredes e adquirindo espessura arquitectónica, se soltassem dos planos. A partir delas, somos levados a experimentar o edificado como um organismo vivo, em que o corpo inerte da arquitectura se liberta da sua rigidez e estaticidade. O mote que subjaz a esta orgânica, activa um jogo entre as linhas, os planos e os materiais dando forma ao espaço, gerando um lugar de relações, de superfícies e vazios – tensões que se mostram sem se materializar. Não é estranho, portanto, que através do conjunto de obras apresentado na exposição Clivagem, possamos ver também a representação plana a adquirir tridimensionalidade. Não se trata apenas de, por analogia ou semelhança, poder discernir composições volumétricas oriundas do universo geológico nessas representações. Elas adquirem espacialidade própria por abrirem um campo de clivagem para a projecção da nossa experiência real, onde a falha, a queda e a perda podem ter lugar. No desenho, as gradações do grafite ou da tinta-da-china e os brancos fornecidos pelo papel abrem para nós horizontes de profundidade, que se estendem para lá da galeria onde se mostram, rompendo virtualmente a sua construção física. De facto, nestas obras abre-se um espaço para a projecção do nosso corpo que, frente a elas, é obrigado a procurar a sua posição. Estes corpos-pictóricos, de onde está ausente qualquer figuração humana, comportam-se perante nós como paisagens depuradas, abrindo um hiato em frente do qual, estando nós com os pés assentes na terra, temos a sensação de poder imergir. Deste modo, não estamos dentro nem fora da tela, nem incluídos nem excluídos do perímetro que as obras ocupam, mas antes «apanhados» no seu intervalo de tempo ou clivagem. Esta ideia de fissura está já presente noutras séries da artista, nomeadamente, “Diferent views” (2008), “Seven other directons” (2009) e, sobretudo, “Caos-nuvem” (2009), um conjunto de pinturas sobre o estado gasoso que adquire aí constituição mineral. É na fracção de tempo, ténue passagem entre o gasoso e o mineral, que ocorre a clivagem. A partir dela, podemos experimentar a intensidade das pequenas rupturas como se fossem o acontecimento total.

 

Maio de 2011

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