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Pregas, fissuras e mundos paralelos

2015

Bangbang Gallery, Lisbon

 

A INVENÇÃO DO MUNDO

Ou uma ideia de viagem na obra de Paula Prates

por Ana Anacleto

 

 

“(...) The lava, very porous in certain places, took the form of little round blisters.

Crystals of opaque quartz, adorned with limpid drops of natural glass suspended to the roof like lusters,

seemed to take fire as we passed beneath them. (...)”[1]

 

 

“(...) Some magnificent specimens of marble projected from the sides of the gallery:

some of an agate grey with white veins of variegated character,

others of a yellow spotted colour, with red veins;

farther off might be seen samples of colour in which cherry-tinted

seams were to be found in all their brightest shades. (...)”[2]

 

 

Jules Verne, na sua obra Voyage au centre de la Terre datada de 1864 e tida como uma obra seminal no estilo literário da Ficção Científica, descreve – através da voz de uma das personagens – uma maravilhosa, atribulada e demorada viagem que decorre entre a camada superficial e o (suposto) âmago do Planeta Terra. Sabemos que a obra teve, na sua génese, a leitura realizada pelo autor de uma outra obra (esta sim de carácter verdadeiramente científico) titulada Geological Evidences of the Antiquity of Man, da autoria do geólogo Charles Lyell (publicada um ano antes). Tendo como base alguma da informação ali retida, Jules Verne dá lugar, na criação da sua “jornada”, a uma recriação efabulada de uma viagem carregada de detalhes científicos cuja resistência ao tempo se prova hoje ineficiente, uma vez que, com a evolução da investigação científica, muitas das propostas apontadas por Verne foram sendo testadas e provadas como inverosímeis.

Pese embora este detalhe – a inverosimilhança – o que importa reter desta obra é a sua irresistibilidade, a sua capacidade de nos fazer viajar com os personagens, de nos transportar para o exacto tempo e espaço ali descritos, de nos pôr (ainda que conscientes das suas inverdades) a sentir o mesmo arrepio provocado pelo medo ou pela emoção do confronto com os perigos do desconhecido, próprios do ambiente exploratório criado por Verne. E, sobretudo, saber que as mesmas sensações terão sido partilhadas pelo autor aquando do processo de criação da obra.

À semelhança de Jules Verne, pensemos agora na viagem como um processo de conhecimento. E, mais exactamente, na viagem imaginária (fruto de criação intelectual) como ferramenta de produção de conhecimento. No seu Dicionário de Lugares Imaginários, Alberto Manguel e Gianni Guadalupi asseguram que “A nossa geografia imaginária é infinitamente mais vasta do que a do mundo material. Esta observação, por muito banal que seja, permite-nos detectar a generosidade imensa de uma função humana vital: a de dar vida ao que não pode reclamar presença no mundo do volume e do peso.”[3]

Ora aquilo que propomos, é que olhemos agora para as várias séries de trabalhos apresentados, por Paula Prates, na exposição Pregas, fissuras e mundos paralelos, na Galeria Bangbang, em Lisboa, e que os vejamos à luz desta ideia da viagem imaginária.

Com uma amostragem que atravessa vários anos da produção da artista, reuném-se obras que, no nosso entendimento, atestam do seu interesse pelos fenómenos científicos de cariz natural próprios dos universos da mineralogia e da geologia, bem como da atenção que dedica aos fenómenos atmosféricos e lumínicos, cruzando-os com um interesse manifesto na desconstrução dos modelos de representação próprios do universo do desenho e da pintura.

Com um olhar verdadeiramente científico, interessam à artista, e em primeira instância, tanto os macro-acontecimentos quanto os micro-acontecimentos, tanto as grandes explosões quanto as pequenas fissuras, tanto os estados sólidos quanto os (aparentemente opostos) estados líquidos ou gasosos, tanto os contrastes de claro-escuro quanto a riqueza das vibrações de cor.

Através do recurso a vários media e uma acentuada variação de escalas, as obras que constituem esta exposição, convidam o espectador a deixar-se levar nessa viagem exploratória de descida até um mundo novo, repleto de acontecimentos geométricos que, reclusos da sua existência bidimensional, se propõem e se projectam no sentido de uma tridimensionalidade imaginária, própria dos efeitos ilusórios da representação. Somos ludibriados pela geometria resultante do cruzamento de linhas e planos, na sua procura de existência tridimensional, e aceitamos esse logro conscientes do estado escapista que nos permite viver verdadeiramente essa experiência de tridimensionalidade.

Nesta aproximação, dá-se o surgimento de um Universo, de facto.

Estamos perante um conjunto de imagens – produzidas, como sabemos, também a partir de um conjunto de imagens que lhes são anteriores[4] - e que, na sua capacidade expressiva, se constituem como facilitadoras, para o espectador, de uma cartografia imaginária. Um mapa de lugares não existentes mas, de alguma forma, familiares.

Recorrendo de novo a Manguel e Gadalupi: “É seguindo as geografias imaginárias que construímos o nosso mundo: o resto é apenas confirmação.” [5], afirmaríamos que os desenhos e os desenhos/ pinturas que Paula Prates nos apresenta, se assumem como lugares que, embora não tendo uma existência física, conseguem manter com o nosso espaço uma relação de referência, de familiaridade, transformando a experiência da visita à exposição numa experiência também alimentada pela recordação. Nesse território em que memória e imaginação procuram encontrar-se.

Há neles um imenso sentido edificatório, de construção, de composição. Valores e referências como um cima e um baixo, um frente e um trás, uma esquerda e uma direita, ajudam a posicionar o espectador (e sobretudo o seu corpo) na relação com uma imagem que, na sua aparente formulação se nos apresenta como próxima da abstracção. São, universos, de facto, e neles há até a ilusão de movimento conferindo um carácter eminentemente dinâmico a conjuntos de formas que se pensariam inertes. São universos porque neles também há acontecimentos, porque neles também há acção, porque neles também há vida.

Para concluir, assumimos então que Paula Prates cria mundos, lugares, espaços (inevitavelmente carregados de tempo) fora do nosso espaço e do nosso tempo, e que, ao fazê-lo, nos convida a percorrê-los para que ao nosso conhecimento adquirido possamos somar universos de conhecimento insuspeitos. Somos convidados a tomar o nosso papel de exploradores à lá séc. XIX (apesar de já numa era digital), deixando-nos levar pela profunda emoção da descoberta, convictos de que “There is nothing more powerful than this attraction towards an abyss”[6].

 

[1] VERNE, Julesin “A Journey to the Centre of the Earth”, Capítulo 15, acedido online via http://www.gutenberg.org/files/18857/18857-h/18857-h.html , em Fevereiro 2015

[2] VERNE, Julesin “A Journey to the Centre of the Earth”, Capítulo 17, acedido online via http://www.gutenberg.org/files/18857/18857-h/18857-h.html , em Fevereiro 2015

[3] MANGUEL, Alberto / GUADALUPI, Gianniin “Dicionário de Lugares Imaginários”, Colecção Viagens, Tinta da China Edições Lda., Lisboa, 2013 (p. xxi)

[4] O processo de trabalho de Paula Prates tem, por norma, a selecção inicial de imagens (recolhidas ou produzidas pela própria) que são depois manipuladas digitalmente e, no fim desse processo, transpostas para a superfície do papel ou da tela e aí alvo das alterações próprias do media (desenho ou pintura ou escultura ou instalação).

[5] MANGUEL, Alberto / GUADALUPI, Gianniin “Dicionário de Lugares Imaginários”, Colecção Viagens, Tinta da China Edições Lda., Lisboa, 2013 (p. xxi)[6] VERNE, Julesin “A Journey to the Centre of the Earth”, Capítulo 14, acedido online via http://www.gutenberg.org/files/18857/18857-h/18857-h.html , em Fevereiro 2015.

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