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Estruturas 1:1

2009

Sala do Veado, Museu Nacional de História Natural, Lisbon

 

PAULA PRATES. LUGARES FORA DO LUGAR

 

O primeiro problema que encontro na hora de começar a escrever sobre o trabalho de Paula Prates é como defini-la, onde localizá-la, como etiqueta-la. Rapidamente abandono essa ideia para, como ela, despregar uma lógica desdobrada que me permita desbordar a habitual linearidade da escrita para traçar ou desenhar todo um conjunto de pregas, fissuras e mundos paralelos que conseguem aprofundar de um modo mais cúmplice na sua poética. Ao fim e ao cabo, se em alguma coisa penetra o seu trabalho é na ambígua incerteza de que não conseguimos reconhecer.

Observo na peça apresentada, seguramente objecto, seguramente desenho, e imediatamente penso quando há anos Sol LeWitt rejeitava a utilização de palavras tais como pintura e escultura - que conotam toda uma tradição e implicação, uma aceitação consequente dessa tradição, impondo limitações ao artista que rejeita fazer uma arte que vá para além dessas limitações - para descrever um trabalho. Parece como se para determinados artistas resultasse insuficiente a simples exposição dos seus quadros, percebendo esse efeito duplo de imagens produzidas dentro do quadro e imagens conformadas fora dele.

Na obra de Paula Prates a equação complica-se. Uma série de estruturas modulares de madeira dispõem-se em curvatura ao longo da sala. Assim, define uma posição, mas também todo um caleidoscópio de possibilidades perceptivas. A pintura, o desenho, ou como o queiramos definir, torna-se espaço físico, e a arte da contemplação, o olhar, sobrevêm uma ciência de comportamento.

É a realidade como colagem, dentro e fora do “quadro”. Assim reclama-se a importância do contexto, que suporta à arte como uma parede ao quadro. Porque se temos que estreitar distâncias com alguma das tendências pictóricas contemporâneas definiríamos o trabalho de Paula Prates como pintura expandida, como realidade que permite ser penetrada, habitada; a pintura como exemplo de expansão em direcção ao escultórico e arquitectónico e em direcção a um conjunto fractal de formas piramidais que parecem desbordar a sua inevitável bidimensionalidade. A obra, como elemento plano, sobrevem espaço tridimensional pela sua fusão em simbiose com a arquitectura, gerando outra pele, enxertada, como a escrita desconstrutiva de Jacques Derrida.

Paula Prates trabalha o perfil das coisas para rapidamente esculpir as suas formas como se rebentassem com a única intenção de fracturar o plano pictórico. Como o reverso daquela “outra” zona enigmática que propunha Lucio Fontana, Paula Prates procura que os seus geométricos desenhos expludam para ocupar, diria ainda que para violar e se impor, ao espaço físico. São formas que avançam, que desbordam do interior para o exterior. Sucede o mesmo com a sua forma de proceder: tomando fotografias científicas como ponto de partida para posteriormente transforma-las e se distanciar do referente num subtil jogo de visibilidades; dentro/fora; público/privado…

Poderíamos pensar nas teorias de Michel Serres, para quem na história da ciência está submetida à turbulência, isto é, está sujeita a conexões aleatórias de todo o tipo entre diversas áreas. Serres assinala como a ciência avança a partir do imprevisível e do inesperado. O espectador diante das obras de Paula Prates assiste também a uma sorte de deriva. Talvez por isto tudo não existe um centro nas suas obras; todos os ângulos e direcções são válidos à hora de assaltar a exegese dos seus trabalhos. E é que Paula Prates contradiz o dirigido, dificulta a visão fácil e multiplica as possibilidades do que, em princípio, nos resultaria familiar.

De certo modo, entendo os seus desenhos como posicionamentos sem local real que mantêm uma relação de analogia com o espaço real. Seriam como um contraponto à inversa, um reverso, embora sempre irreal, ou melhor, virtual, de virtus (do latím), apenas existente em potência e nunca em facto. Mas Paula Prates trata de ir além com propostas como esta, convertendo tudo em locais efectivos, reais, com forma de contra-posicionamentos. Seriam qualquer coisa como locais fora de um local. Tatuagem de formas orgânicas que nascem de uma previa descontextualização, produto da desconstrução digital. Seguramente por isso ainda parecem guardar essa vida contida, que luta por se expandir por onde pode, como a raiz de uma árvore.

Poderíamos falar, então, das heterotopias que define Foucault[1], divididas pelo espelho pelo espelho: “Creio que entre as utopias e estes posicionamentos absolutamente outros, estas heterotopias, haveria sem dúvida uma sorte de experiência mista, medianeira, que seria o espelho. O espelho é uma utopia, porque é um local sem local. No espelho, vejo-me onde não estou, num espaço irreal que se abre virtualmente por trás da superfície, estou lá, lá onde não estou, espécie de sombra que me devolve a minha própria visibilidade, que permite olhar-me lá onde estou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente e tem, sobre o local que ocupo, uma espécie de efeito de retorno; a partir do espelho descubro-me ausente no local no que estou, uma vez que me vejo lá”[2]. Nos desenhos de Paula Prates seriam então essa Alice do outro lado do espelho do espaço real, com identidade espacial própria e em simultâneo dentro desse espaço, embora com outro tempo.

Tal como nos relatos de Maurice Blanchot os desenhos de Paula Prates desorientam-nos na sua variabilidade geométrica porque albergam um outro tempo, não fictício, se não o da narrativa desenhada, ou se preferirem da experiência de conformação dessas formas voltadas ao desconhecido. E o tempo da escrita em Blanchot; o tempo do desenho em Paula Prates. Porque o tempo cá experimenta-se. Em Blanchot é o tempo do inaudito e o impensável, do obscuro ou, mais concretamente, da ausência de tempo ou presente sem presença. O texto domina, o discurso vence e impõe-se ao sujeito. Como nas formas de aparência fractal de Paula Prates, tudo se desborda, até a própria margem, e a artista trata de tatuar essa realidade insistindo no fragmento, somando outro tempo mais, virtual, imaginário como o tempo da escrita, aporético como o inerente a essa escrita de Blanchot, incapaz de se tornar presente definitivamente.

Insistamos para que fique claro: em Paula Prates a pintura nasce da experiência, como aquele fluir caótico que Michel Serres destila de Lucrécio no seu empenho em mostrar que o nascimento da física nasce no século I antes de Cristo a partir do texto Da natureza das coisas, do citado poeta e filósofo romano. Lucrécio descreve duas classes de caos, o caos/pendente -caudal laminal dos elementos ou fluxo que traça um espaço fibrado - e o caos/nuvem - mais desordenado, flutuante e cheio de dissimilitudes e oposições-, sobre os quais impor-se-á o torvelinho como pré-ordenação das coisas. A pintura desenhada por Paula Prates também vem a ser uma ordem sobre a desordem, ou mais concretamente um torvelinho por fluxão próximo das duas ordens citadas. Seria qualquer coisa como a virtual passividade de um dado[3], uma deriva. A sua quietude é aparente e outras vontades regem-no.

Ou melhor, como aquela imagem na que o botânico inglês Robert Brown contemplou através de um rudimentar microscópio em 1827 e que hoje conhecemos como movimento browniano: um grão de pólen suspenso na superfície da água move-se erraticamente, ziguezagueando e mudando inadvertidamente de direcção. A água está completamente quieta, nada a perturba. O pólen move-se porque está a ser constantemente golpeado pelas moléculas de água que o rodeiam. Os golpes não acontecem por igual em todas as direcções, e assim cria-se uma pequena força aleatória que conduz o grão de pólen como se fosse o copo de um tabuleiro Ouija. Apenas um olhar atento pode descobrir ou apreender tal possibilidade expressiva. E esse olhar tenso, essa outra ordem mineral, é a que desdobra Paula Prates preocupada pela captura que emerge sempre que a contemplação se torna intensa.

O proposto por Paula Prates está dentro e fora do quadro, é um desdobramento de tempos de acordo com uma tradição pictórica que nos diz que à medida que a modernidade alcança a maioridade, o contexto converte-se em conteúdo. Numa peculiar inversão, o objecto introduzido numa galeria “emoldura” a galeria e as suas normas. Em artistas como Paula Prates parece indiscutível que o físico da envolvência que alberga a obra entende-se como parte indispensável para a compreender. Falamos da arte como experiência participativa do espectador que, em muitos casos, penetra na obra em vídeo-instalações que fogem e procuram espaços fora do ecrã para valorizar o tempo, a capacidade especulativa e o nível de estímulos que multiplica as possibilidades, mas também de uma pintura que cada vez mais renega das suas margens para valorizar o contexto, como acontece neste caso. Porque hoje não é necessário expressar-se no quadro e penso inevitavelmente em Rosalind Krauss quando afirma que à medida que a fronteira entre o de dentro (a pintura) e o de fora (a moldura) começa a se apagar e romper, cabe a possibilidade de perceber até que ponto a “pintura como unidade” é uma categoria artificial, construída sobre a base do desejo, muito semelhante à “edição original”. Neste terreno indefinido e submetidos a esse grau de imprecisão, movemo-nos ao enfrentarmos propostas como a de Paula Prates, dessas que tratam de construir um novo olhar com o apoio da especulação espacial.

 

 

David Barro
Novembro 2008

 

 

 

[1] Michel Foucault, Espacios diferentes em Obras esenciales Vol. III. Estética, ética y hermenéutica, Editorial Paidós, Barcelona, 1999

[2] Michel Foucault - De los espacios otros (Des espaces autres), Conferência realizada no Cercle des études architecturals, 14 de março de 1967, publicada em Architecture, Mouvement, Continuité, n 5, outubro de 1984. Traduzida por Pablo Blitstein e Tadeo Lima.

[3] Mallarmé assinala como todo pensamento emite uma jogada de dados (S. Mallarmé: Obra poética II, Hiperión, Madrid, 1980).

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