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Agarrar o que não vejo

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2022

Curadoria: Ricardo Escarduça

Galeria da Biblioteca de Alcântara, Lisbon

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Créditos fotográficos: Samuel Duarte

 

“Encantada pelo seu rigor, a Humanidade esquece e torna a esquecer que é um rigor de xadrezistas, e não de anjos.”

Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, in Ficções; Jorge Luis Borges; Quetzal Editores

 

 

Como agarrar, como ver, a núvem no céu? Agarra-se, vê-se, uma pedra no chão. Poderia ser a copa de uma árvore – quem sabe? Poderia ser qualquer outra coisa, na absoluta pureza das coisas que aí estão, que vêm à sua presença natural, sobretudo enquanto conjugação estrita de uma matéria e uma forma, e, depois, na reunião das suas propriedades exteriores, tomadas como o que em si é apreendido pelos sentidos e é medido ou pesado pelo cálculo, que concedem o conhecimento da coisa em si, que assim é e nada mais é, nesta delimitação à qual, ainda, associa-se, em reciprocidade, um nome que entra em uso comum, e enfim a designa enquanto representação diafána e espectral, até na sua ausência (1).  

As pinturas que Paula Prates apresenta nesta exposição surgem do interesse pelas coisas de carácter geológico e mineralógico e pelo seu devir, as formas e matérias e os seus fenómenos transformativos – aliás, tal como em quantidade predominante no seu corpo de trabalho, organizado em séries distintas, que sobressaem entre si por via das opções artísticas adoptadas. Coisas como formações rochosas, pedras, cristais, como crescem e reduzem, como se constroem e destroem. Coisas e acontecimentos que tocam a alma de Paula Prates, e a que responde.

E, no entanto, nas suas pinturas, nada exclusivamente respeitante ao rigor de tal xadrez está presente. No processo e na obra de Paula Prates, a essencial questão não será como agarrar e como ver a pedra, mas antes, o que há a agarrar, o que há a ver na pedra? Ou, tal como quando perante a representação de um velho e cansado par de sapatos de camponesa pintada por Van Gogh (2), o que a pedra abre e dela emerge, o que ela erige?

Decerto – adivinha-se –, Paula Prates é assaltada – puro golpe e pura ferida – pela pedra que agarra e vê; a pedra que, em algum instante súbito, diante de si, abre-se, rasga-se na sua profundidade, e, desde a irrevogabilidade desse mistério, passa a agarrá-la e olhá-la, a ser sujeito e não objecto, para, por detrás do complexo sensorial e racional, além da visibilidade e depois da superfície, no movimento radical de alteridade determinante à imaginação, criar uma imagem mental (3). 

É neste momento que, na matéria e forma, na sua apreensão e análise, a presença da pedra perde importância, desaparece e retira-se em ausência, sem contudo tolher a força para ver dentro dela, a partir dela, além dela. Ultrapassa-a, esta força. Sobrepõe-se a sua figurabilidade, em que reaparece alterada, a disposição para criar e lançar imagens e sentidos diversos que a sobredeterminam; é esta figurabilidade, esta dialética visual, que as imagens da arte superiormente activam e operam (4). Um trazer à luz o que não se vê, abrindo e rasgando a noite fechada no seu abismo interior, na estranheza do que lhe é outro. O abrir um aberto até então fechado,
e enfim revelar o que está oculto, porém já está lá.

 

Criando um espaço para escutar no silêncio da profundidade, para ver no negrume da noite, ou um mapa para conduzir os movimentos que se entrelaçam, uma teia que traça uma constelação de acontecimentos – note- -se a consistência sugestiva, conceptual, dos títulos dos núcleos de trabalhos que compõem esta série de obras –, aparecem, sobre o papel, composições de formas geométricas elementares e tons vários de uma mesma cor (com excepção do policromatismo no núcleo Trama viva). 

Descende de Cézanne aquele cujo olhar sobre o mundo procura uma visão libertada na colisão ou convivialidade entre o exterior e o interior, que busca na natureza a forma geométrica, um outro como ver, além dos sentidos e da razão contudo aquém do sagrado. Um outro ver do que não se vê, e é, em si, alguma modalidade de espiritualidade. Num movimento tão enigmático e despojado, por não estar no rigor do material e tangível, que se diz e explica, quão nítido e precioso, por estar no ideal do emocional e subjectivo, que não se enuncia ou formula, as formas essenciais, coisas do espírito, são a ressonância exterior de um estado de alma, a salvaguarda do banal e vulgar, a emancipação e melhoramento, como um pão que sacia a fome (5). 

Uma espiritualidade que, porém, pertence à, que está na, poética do ser-humano perante as coisas do mundo exterior – no curso do assalto, da queda no rasgão, a mão de Paula Prates rejeita o ângulo recto e a curva imaculada, renuncia ao determinismo de um e ao divino de outra, e encontra a irregularidade elementar do triângulo e do quadrilátero, que o são sempre e em cada vez, não obstante o movimento com que estejam animados, não obstante o caos que comanda a ordem subjacente, o calor que aquece o permanente acontecimento. 

No movimento do objecto para a imagem – a mental e a artística –, de uma ausência para outra presença, no acontecimento do representar, Paula Prates altera radicalmente o estado material da pedra. Anula o sólido e invoca o fluido. O olhar exterior, sensorial e racional, sobre a pedra indica que esta aparece e ocorre de fora para dentro, da agência de elementos e transformações que são exógenas a uma matéria presumida como inerte. No caos, pelo calor que injecta, Paula Prates coloca a pedra em movimento desde o seu interior, torna-a plástica. Resgata-a da morte e sopra-lhe vida, um espírito. Como ser-vivo, as composições crescem de dentro para fora, a partir de algum fulcro embrionário que instala-se algures no papel e, no gesto arrítmico, sem centro gravítico ou direcção dominante, conduzido por um caos com a ordem misteriosa do natural e do vivo, multiplica-se em semelhantes adjacentes e confinantes, simultaneamente autónomos e vinculados entre si, num acontecimento que implica a evanescência do princípio, a impossibilidade do retorno ao nascer.

Paradoxalmente, cada pintura parece interromper o acontecimento, os movimentos de alteridades, detidos num instante impreciso e precário. Tão preponderante quanto a forma, é o tom da cor. As tonalidades de cor são tempos distintos, entre o presente firme e a distância do que cresce ou esmorece, do que antecede ou sucede. Porém, sem os esclarecer. No tempo interrompido, a pintura mergulha no interior de um tempo puro sem a afectação da memória e o desejo do porvir, nem despojo e nem protuberância, nem nostalgia do que já foi e nem melancolia do que já não será, e torna-se outro acontecimento, num tempo em potência total, a representação de um tempo sem tempo, um limiar frágil entre pedra e imagem, ausência e presença, queda e emergência. A pintura de Paula Prates torna-se ruína pura. A coisa sem tempo que, enquanto fronteira, é só vestígio e possibilidade – o que desvanece mas não morre, o que ressurge e edifica; será a alteridade da ruína pura o seu estatuto fatal e essencial, o seu poderoso apelo?

 

Sob a névoa do papel, surge enfim a forma geral, orgânica e viva, dissonante das formas geométricas elementares, que delas faz harmonia. Separada da pedra, há muito ausente e tomada pela vibração interior que desperta – sem referência de escala ou ilusão de matéria –, resolve a superfície que ocupa, até então absoluta e indistinta. Forma e cor, só. Forma e cor, em cada fragmento, em cada membro, e, por fim, na integralidade de um corpo geral que aparece no espaço, e o clarifica. São pinturas quase-esculturas. Desprendem-se da clausura na superfície para afundar-se além ou suspender-se aquém. Uma mais ficção, na qual a superfície intersecta os fragmentos de um volume imaginário de altos e baixos relevos, de cheios e vazios. Uma mais ficção, na qual o papel é expandido em espaço envolvendo o volume virtual.

Na pintura e na escultura, a representação do volume e do espaço é uma interrogação essencial que atravessa a arte ocidental, operada pela compressão gráfica da composição frontal que sufoca o espaço, a libertação da profundidade com os artifícios ópticos do ponto de fuga, dos contrastes de luz e do grau de detalhe, e – renunciando à imitação e ao duplicado –, a pulverização da tridimensionalidade com a multiplicação ou anulação do ponto de vista, ou a renúncia absoluta da sua representação na presença específica do objecto no espaço. 

No curso desta genealogia, destes distintos modos de ver, a forma é afectada por estados emocionais, por ecos ideológicos, por expedientes ópticos, sacrificando a construção do volume e do espaço através da forma, enfraquecendo a plasticidade da forma elementar e favorecendo uma visão pictórica (6). A pintura de Paula Prates privilegia a visão plástica, o acontecer plástico que emerge exclusivamente do interior das coisas. A clareza da construção do volume e do espaço através só da forma pura, da expansão da sua existência espacial que Paula Prates aguça com o tom da cor.
O imediatamente dado e a vibração interior, suspendendo relações com contextos envolventes, que o interior das câmaras ou cápsulas inscritas na arquitectura intensifica, onde apenas conta a reflexão sobre a visão e a criação plástica do volume e do espaço. Podendo parecer sugerir a integração e a relação com o espectador, a visão plástica requer o despojamento da dimensão teatral e performativa do espectador implicada na experiência cinemática e temporal da obra em relação com a arquitectura. No tempo anulado de um único gesto de integração imediata e completa, cada pintura de Paula Prates engloba e unifica as partes autónomas, a descontinuidade do verso e do reverso das coisas do mundo, das regiões visíveis e não visíveis, iluminadas e ensombradas, que, pela sua plasticidade, agem sem hierarquia sobre a visão, na captação de uma expressão tridimensional pura, sem dispersão e artifícios, que absorve e fixa todo o movimento, sem o anular (7). 

 

Nas incertezas e ambiguidades de um labirinto de espelhos sem a ilusão do reflexo, na clareza da ficção, há histórias sobre espaços e tempos imaginários, que escapam às trevas do rigor xadrezista nos atlas ou enciclopédias, habitadas por cépticos do mundo exterior que fazem espelhos de pedra de modo a que ele ceda, para quem a percepção está além das coisas e dos nomes, das proposições ou deduções (8). Entre a núvem no céu e a pedra no chão, eis o desconcerto de um rasgão instigador da relação do ser-humano com o mundo. Sem matéria e sem espelho, a abstracção da pintura de Paula Prates exerce um realismo puro e ideal, que sacode e isenta-se de positivimismos explicativos e naturalismos pictóricos, e que, no mesmo gesto, irradia pistas para algo que emancipa-se do real, projecta-se além – lança para a frente e para cima, um impulso –, despertando uma penetrante vivência das coisas fortuitas de um mundo contigente, infiltrando um modo de ver diferenciado pela totalidade inescapável da forma e da cor. As outras totalidades, que são o resto, 

são o resto.

 

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Ricardo Escarduça

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(1) Cf. A origem da obra de arte; Martin Heidegger; Dafne Editora.

(2) Cf. Ibidem.

(3) Cf. O que nós vemos, o que nos olha; Georges Didi-Huberman; Dafne Editora.

(4) Cf. Ibidem.

(5) Cf. O espiritual na arte; Wassily Kandinsky; Publicações D. Quixote.

(6) Cf. A escultura negra; Carl Einstein; Orfeu Negro.

(7) Cf. Ibidem.

(8) Cf. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, in Ficções; Jorge Luis Borges; Quetzal Editores.

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